Lenna extra | Minha primeira vez com a cobertura de literatura
Uma redação de um jornal carioca, o fim de um caderno e mulheres jornalistas que escrevem sobre cultura
Essa é mais uma edição especial da Lenna onde eu, Mariana Moreira, jornalista e editora da página, conto um pouco sobre a minha relação com o jornalismo e com os livros.
Essa edição também marca uma mudança no design da página.
Na primeira edição, eu contei um pouco sobre a trajetória da Lena Frias, jornalista que inspirou a criação da newsletter. Também dá para saber um pouco mais sobre ela, inclusive ouvir a voz, no episódio 4 da audiossérie “Chumbo e Soul”, podcast produzido pela Rádio Novelo e disponível gratuitamente na Audible como parte das ações culturais da campanha Rio Capital Mundial do Livro 2025.
1.
Era o ano de 2012. Eu, recém-formada no curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), havia sido contratada como trainee do “Prosa & Verso”, único caderno dedicado à cobertura literária de um grande jornal do Rio de Janeiro. Era uma fenda no tempo a abertura da vaga. O caderno era editado pela jornalista Mànya Millen e escrito apenas por dois repórteres que depois viraram colegas de profissão, o Guilherme Freitas e a Suzana Velasco. Eu admirava muito o texto da Suzana e ela se tornou rapidamente um exemplo de repórter para a foca (como são os chamados os jovens repórteres) que eu era.
2.
O “Prosa” ocupava uma minúscula parte no fundo da antiga redação do Globo, na Rua Irineu Marinho 35, no Centro do Rio de Janeiro. A redação ficava no segundo andar do jornal. O chão ruidoso de madeira era coberto por um antigo carpete azul. E não só o chão fazia ruídos. Os telefones tocavam sem parar, o som do teclado formava uma sinfonia pouco harmônica e, de vez em quando, um ou outro editor ou editora rompia o falatório da televisão ligada 24 horas em canais de notícias para gritar alguma dúvida sempre urgente. A redação era em formato de L. Lá no fundão, depois das populosas mesas ocupadas por jornalistas do “Rio Show” e do “Segundo Caderno”, estava o nosso caderninho. Uma simples baia de fórmica branca agrupada em quatro mesas, quase sem visibilidade, tamanha a quantidade de livros que ocupavam todos os espaços, além das laterais e do chão da editoria. Parecia uma fortaleza protegida por grandes muralhas de papéis impressos. Era exatamente como eu imaginava uma redação quando era criança.
3.
Eu lembro muito do meu primeiro dia de trabalho. Escolhi uma roupa de cores neutras. Fui com uma calça bege e uma blusa de manga longa azul para conhecer os meus novos colegas. A mesa que eu ocuparia, naquele dia, já estava tomada pelos cadernos e blocos da repórter Mariana Filgueiras, jornalista que admiro até hoje e escrevia naquela época para a Revista que saía aos domingos. Lembro de esperar a Mari recolher a bolsa e levar os objetos pessoais e livros para outro espaço e entendi que eu poderia, a partir daquele instante, sentar em algum lugar e começar a escrever.
4.
Tudo foi muito mais difícil do que eu pensei. O meu texto, apesar da minha boa vontade, ainda era extremamente imaturo. Eu tinha 25 anos. Mas a minha curiosidade, o meu ritmo de leitura e o meu interesse por textos e por técnicas de escrita sempre foi aguçado. E a editora, a Mànya, sempre muito generosa comigo, percebeu muito bem todas as minhas qualidades, assim como todas as minhas falhas e a falta de experiência para lidar com todos aqueles escritores, aquelas escritoras e aqueles séculos de teoria literária que teria que enfrentar.
5.
A minha primeira tarefa não foi simples. Naquele ano, fazia 70 anos da morte da escritora inglesa Virgínia Woolf (1882-1941) e a obra, enfim, entrava em domínio público, o que era digno de uma página inteira sobre o tema.
Quando um autor ou autora entra em domínio público, significa que as editoras interessadas em adicionar os títulos no catálogo podem preparar diversos tipos de edições especiais e novas traduções. Era o caso. Três volumes novos já haviam chegado ao “Prosa” e me coube o trabalho de conversar com dois tradutores sobre as novas edições que estavam indo para as livrarias. Lembro de conversar com a Denise Bottmann, tradutora ainda hoje atuante. Possivelmente, se você gosta e compra livros, há uma grande chance de ter alguma tradução dela na sua pilha. A matéria, a minha estreia no jornal, foi em 26 de fevereiro de 2012. Também fui muito feliz fazendo uma matéria especial sobre representações do Subúrbio do Rio de Janeiro, inspirada no lançamento da série ‘Subúrbia’, exibida pela Tv Globo naquele ano de 2012. A matéria saiu em 27 de outubro.
6.
A minha aventura no “Prosa”, eu sabia, tinha prazos de validade. O primeiro deles tinha a ver com um rigor burocrático do setor de Recursos Humanos. Eu não poderia ocupar a função de trainee por muito tempo. O outro prazo era o fluxo natural da vida dos jovens focas: não adiantava ficar em apenas uma editoria. Era preciso circular pela cidade, conhecer pessoas, fazer fontes, andar por aí, enfrentar problemas, escrever diferentes tipos de texto, entrevistar todo tipo de gente e, principalmente, ter espaço para errar e aprender. O “Prosa” era uma ilha de segurança em meio ao caos da cobertura da cidade, por exemplo, e tudo conspirou para que eu circulasse rápido demais.
7.
Mas antes de trabalhar em outras editorias, entrevistei o Joe Sacco, reconhecido escritor e ilustrador americano dedicado à pautas investigativas de Direitos Humanos. Foi uma conversa que me encheu de orgulho e ansiedade, publicada na página “Verso”, em 20 de outubro de 2012.
Também escrevi sobre o racismo na obra do Monteiro Lobato (1882-1948), cuja obra começava a ser reavaliada no início dos anos 2010. Fiz pautas sobre livros que contavam histórias da Paris no pós-Segunda Guerra; conversei com o brilhante ilustrador Odilon Moraes e também com a historiadora Mary Del Priore, que durante aquele ano lançou mais uma de suas investigações curiosas sobre a vida da família Real no Brasil Império. Uma das minhas últimas matérias foi assinada com a Suzana, e investigamos o trabalho poético do Eros Hoagland, fotógrafo e artista visual que registrava objetos deixados por mexicanos na fronteira durante o traumático processo de travessia para os Estados Unidos. A maioria das fotografias era de Ciudad Juárez, um dos lugares mais violentos do mundo.
8.
Ainda trabalhei mais dois anos no Globo em um caderno que era uma aposta nova do jornal para jovens leitores e leitoras estudantes do Ensino Médio e das universidades, no estilo da antiga “Megazine”. O suplemento chamava-se “Formou!”, mas durou apenas cinco edições, em 2013, até o país cindir durante as manifestações das Jornadas de Junho, e tudo mudou no Brasil para sempre. Tudo mudou no jornal também.
9.
Quando comecei a pesquisa para o projeto da audiossérie “Chumbo & Soul”, havia uma grande literatura produzida por pesquisadores e pesquisadoras sobre a cultura negra carioca dos 1980 para dar conta. E todas elas tinham o nome de uma mulher em comum, uma reportagem-guia que era o ponto de partida de tudo que se formulou sobre a juventude negra carioca naqueles anos: Lena Frias e “Black Rio”. A matéria de cinco páginas publicada em julho de 1976 pela repórter Lena Frias no caderno “B”, do Jornal do Brasil, serviu como mapa e como crítica de um movimento cultural que movimentou milhares de homens e mulheres em diferentes clubes, festas e bailes nos fins de semana de uma cidade monitorada por militares. Hoje, a reportagem é um documento histórico. Essa foi a reportagem da Lena que entrou para os livros de H, mas ela escreveu muitos outros textos no “Ideias & Livros” e também no famoso “B”.
10.
Na entrevista para o “Depoimentos para a posteridade”, projeto de memória do Museu da Imagem e do Som (MIS), a Lena conta como começou a apuração da história. E foi lá mesmo, na redação do Jornal do Brasil. Ela avistou dois contínuos, aqueles jovens que faziam um trabalho burocrático nas secretárias dos jornais, negros, vestidos com roupas alinhadas, com o cabelo bem cortado e a autoestima em ascensão. Ela reparou que a imagem deles destoava da expectativa geral sobre a aparência de homens negros trabalhadores de baixa renda, e perguntou a eles quem eram e porque se comportavam e se arrumavam daquele modo. A resposta veio em forma de reportagem sobre os bailes blacks e levantou um debate sobre a cultura negra fervilhante que se espraiava não só no Rio, mas em São Paulo, com os bailes da Chic Show, e com os primeiros desfiles do Ilê Aye, em Slvador, na Bahia. A reflexão, que continua até hoje, só foi possível porque uma repórter curiosa prestou atenção no que estava acontecendo ao redor da própria redação.
11.
Eu não tenho fotografias da minha época de redação. Não costumo me fotografar, mas gosto que me fotografem. Gosto mais ainda de ver imagens dos outros e de praticar técnicas de luz, principalmente de observar meticulosamente as imagens do cinema. Mas eu me fotografo pouquíssimo. Faço uma imagem e já me sinto outra pessoa no instante seguinte e outra pessoa em seguida, e depois outra. Guardo apenas os textos.
12.
O caminho que comecei lá em 2012 na cobertura de literatura, hoje eu tenho a compreensão, foi uma linha acima da média para jornalistas iniciantes. É um pouco a trilha que eu sempre tento voltar e reconhecer nas minhas inclinações de produção jornalística. É um pouco o que representa essa revista independente. Lena fez uma importante reflexão quando decidiu deixar o jornal em 2001 e teceu duras críticas ao modelo de produção da imprensa. O Jornal do Brasil passou por diversas viradas financeiras entre os anos 2000 e 2010. Mudou de formato Standard para Berliner, depois passou a ser apenas um site, que pode ser acessado hoje, mas não investe em produção de reportagens e novos formatos e perdeu a relevância jornalística. O “Prosa” passou por uma reformulação em 2012 e foi descontinuado definitivamente três anos depois, em 2015. O Globo ainda existe, tem um parque gráfico robusto e autossuficiente, integra a editora Globo e completa 100 anos em 2025. As notícias, resenhas e novidades literárias confiáveis são publicadas, eventualmente, aos sábados em alguns poucos jornais e podcasts de editoras.
A edição regular da Lenna volta em agosto.